Em seus contornos gerais a história é bem conhecida. Tendo gravitado, desde a Independência, na órbita das grandes potências europeias — em especial, da Grã Bretanha — no período republicano o eixo da política externa brasileira desloca-se em direção aos Estados Unidos. Abraçada de forma pouco consequente logo após a proclamação da República, a opção americanista ganharia significado mais amplo e profundo com Rio Branco, que estabeleceu, através de sua ação e de seu pensamento, os marcos no interior dos quais a diplomacia brasileira viria a operar durante quase 60 anos. Fundada no reconhecimento precoce da tendência ascendente dos Estados Unidos, no concerto das grandes potências, a estratégia triangular desenhada por Rio Branco reservava à aliança informal com aquele país três papéis bem definidos: 1) o de servir como anel protetor, minimizando os riscos envolvidos nas relações com a França e a Inglaterra, com as quais tínhamos um passado de rusgas e pendências no presente a dirimir; 2) o de atender a um requisito incontornável à solução favorável e pacífica de conflitos territoriais que ainda tínhamos com países vizinhos; 3) o de equilibrar as relações de força no subsistema sul-americano, ao reforçar a posição do Brasil vis-a-vis a Argentina.
A prioridade conferida à parceria com os Estados Unidos traduziu-se não raro, como se sabe, em gestos pouco edificantes. Basta lembrar o apoio dado à pretensão norte-americana de atuar como poder de polícia no Hemisfério (o “corolário Roosevelt”, de 1904); o voto contrário à “Doutrina Drago”, iniciativa do chanceler argentino condenando a intervenção militar de países credores para impor cumprimento de obrigações contratuais a países inadimplentes; ou ainda, o apoio emprestado à agressão cometida contra a Colômbia, da qual resultou um país fictício — o Panamá — e a solução buscada pelos EUA para o problema seu de navegação interoceânica. Mas — como transparece na atuação do Brasil na conferência de Haia, por exemplo — ela não se confundia com uma política de alinhamento automático, ou de submissão passiva aos interesses e às conveniências do mais poderoso. Na expressão original dessa estratégia, a ”relação especial” com os Estados Unidos era buscada como meio adequado para preservar a integridade de um país grande e complexo, que se sabia frágil, e para lhe ampliar as margens de autonomia.
Nesse sentido, nem a ambivalência calculada que marcou em dado momento a conduta exterior do governo Vargas — a qual lhe rendeu o apoio indispensável ao reaparelhamento do Exército e os meios para a implantação da siderurgia de grande escala no Brasil –, nem o ativismo diplomático do governo JK configuram uma ruptura com padrão acima descrito.
Seja como for, por razões várias, a um tempo internas e internacionais, no final dos anos 50 multiplicavam-se sinais de que o modelo da “relação especial” caminhava para o esgotamento. Não foi preciso aguardar muito para se assistir ao reconhecimento oficial desse fato. Já em 1961, com Jânio Quadros, ele se fazia ouvir no discurso da Política Externa Independente. O governo Jânio foi meteórico, mas a reorientação operada por Afonso Arinos, seu Ministro de Relações Exteriores não expiraria com ele. Pelo contrário, seria aprofundada com San Tiago Dantas e Araújo Castro, na Presidência de João Goulart, ganhando travejamento doutrinário muito mais firme. A Política Externa Independente expressava a disposição de intervir, com dicção própria, no debate das grandes questões internacionais, de escapar aos alinhamentos rígidos próprios à lógica da Guerra Fria, de multiplicar vínculos diplomáticos e explorar áreas de convergência com países que partilhavam com o Brasil a condição de subdesenvolvidos. No contexto dessa política, a relação com os Estados Unidos continuava sendo decisiva. Mas agora a boa qualidade da mesma não aparecia mais como condição para a autonomia. Numa clara inversão, os ganhos de autonomia passavam a ser buscados através de uma estratégia de vocação universalista, a melhoria na interação com a potência hegemônica ficando a depender do grau de sucesso dessa política.
Desde então, essas duas atitudes têm balizado a conduta diplomática do Brasil em relação aos Estados Unidos, e o debate político, às vezes muito aceso, sobre a política externa brasileira — discriminando períodos de governo (mais ou menos estreitamente ligados aos EUA) e forças políticas no Brasil (adeptas de posições mais ou menos enfáticas na defesa do princípio da autonomia nacional).
Nesse longo período, as relações econômicas e socioculturais entre os dois países aprofundaram-se notavelmente, do que dá prova o fenômeno relativamente recente da migração brasileira para os Estados Unidos.
Levando em conta a literatura já densa a respeito das relações entre os dois países, do ponto de vista brasileiro, os trabalhos nesta área inovam ao se propor um triplo objetivo: 1) dar continuidade à tradição antes referida; 2) inverter o foco, a fim de iluminar a maneira como o Brasil aparece ao longo do tempo na perspectiva dos formadores de opinião e dos círculos dirigentes nos Estados Unidos, 3) estudar em suas múltiplas dimensões as redes econômicas, socioculturais e políticas através das quais as duas sociedades em questão se entrelaçam.
Além do interesse de conhecimento, inerente ao presente programa de pesquisa como um todo, os trabalhos nesta área são animados também pelo propósito de contribuir para que o Brasil possa beneficiar-se o máximo possível nesse relacionamento sumamente complexo, que encerra tantos desafios e tantas oportunidades.